quinta-feira, 9 de junho de 2011

Mergulho

Observou por dias, perdida em pensamentos sobre curiosidades, sentimentos e sentidos. Analisou cada tonalidade, sorveu cada fragrância, experimentou cada textura, saboreou cada gosto, escutou cada ruído e, nas últimas horas, viu essências coloridas que rasgavam a carne com sabores adocicados.
Por conta delas, levantou-se, impulsiva e cautelosa. Correu com leveza ao encontro dessas sensações ou ao encontro de si, porque tudo era também parte dela. A cada passo, dissolvia-se e integrava-se, ao mesmo tempo em que completava-se e unificava-se. Seu corpo, então, virou o mundo inteiro e ela sentiu todas as formas de vida dentro de si. Uma tormenta deliciosa de cotidianos que criou nela um novo ser, agora singular e renovado.
De repente, perdeu o equilíbrio. Foi tragada, envolvida e submergiu. Mas, ainda que sem fôlego e força, tornava-se mais intensa e vivaz. Parecia voar, quando na realidade afundava. E a gradual profundidade - apesar de também constituída de segredo, beleza e extravagância - era sinônimo de ausência. Ausência de oxigênio, de controle, de si mesma.
Assim, desistiu e se entregou. Deixou-se cair na escuridão. Uma escuridão serena.

Morreu afogada. Ou morreu de amor.

domingo, 3 de abril de 2011

Sofrer

Feche os olhos (pesados) e sinta cada pedaço em que você se transformou. Cacos, por assim dizer, como vestígios de um vaso de porcelana outrora apresentável. Perceba seu corpo quebrando: mutilado, lentamente se partindo em milímetros, de forma penosa e sem reconstituição.
Sinta aquele vapor escuro e corrosivo que enche o peito e vai silenciosamente tomando conta das suas células, ganhando consistência de uma massa disforme e pesada, até virar líquida e transparente ao cair dos olhos. Ouça sua respiração perdida e o oxigênio que lamenta a pouca força com que você enche os pulmões de ar - por descaso ou cansaço.
Abra os olhos e note que você não pode enxergar. Tudo que vê são manchas disformes e a poeira de si que cai descuidosamente no chão, deixando vestígios da demolição interior. Ao cerrar as pálpebras, entretanto, observe-se numa análise minuciosa. Ao fazê-lo, veja tudo o que um dia foi, o que outras pessoas esperaram que fosse e o que desejou ser.
E então seus músculos vão fraquejar e cada terminação nervosa provocará choques de intensidade insuportável, desumana. Suas cordas vocais vão agir quase sozinhas e sua boca produzirá um grito mudo, porque, apesar disso, não há voz.
Esse grito vai voltar para dentro de você e rasgar qualquer tecido que encontrar, provocando-lhe as papilas gustativas a sentir um gosto amargo e nojento que causará ânsia. O que você vomitará, contudo, serão sonhos perdidos, ódios inexplicáveis, mágoas trancafiadas e fracassos iminentes.
O enjoo, nesse momento, cederá lugar à sensação de falência múltipla dos órgãos. Acreditará que morreu por dentro, mas a persistente dor lhe mostrará que ainda vive. Mesmo que frágil, danificado - ainda vive.
Essa esperança vaga e sádica tomará conta de você e funcionará como um tipo de anestesia, adormecendo cada pedaço dos seus escombros. Por fim, terá sonhos intranquilos e incrivelmente reais.
No dia seguinte, porém, tudo isso será menos pior. Ou assim espera-se.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Da calçada, sonha-se

O sol vencia a sombra invernal dos prédios e árvores, delimitando um pequeno espaço claro e quente naquela calçada irregular. Uma infinidade de pessoas iam e vinham como zumbis: senhoras idosas em busca de resquícios de vida na rua, mulheres bem vestidas e de séria sensualidade, homens de passos duros numa afirmação de masculinidade, crianças que arrastavam os pés na tentativa de acompanhar o ritmo dos adultos, tão focados em seus destinos.
E tão focados estavam - ou assim eram permanentemente - que sequer notavam pedaços de pano velho e células destruídas jogadas no chão, naquela fresta de sol. Vez ou outra, os pés cheios de bolhas e sujeira atrapalhavam a caminhada de algum transeunte, que gastava alguns segundos do seu dia para definir aquele corpo desfalecido como de bêbado ou para oferecer-lhe uma dose homeopática de compaixão.
Quem de fato notava a existência daquele homem, entretanto, eram as formigas que faziam de seu rosto parte do trajeto comunitário e os ácaros que dividiam com ele o tecido desbotado cobrindo aquela pele manchada - de sol, de sujeira e de dor.
Mas ali, deitado em posição fetal, sob o calor sutil dos fracos raios luminosos, ele era outro. Um outro que existia de forma tão convincente em seus devaneios que ele, o resto de ser humano real, conseguia sentir os cheiros, as texturas e os sabores de ser alguém digno e notável.
E o Outro era mais que isso. Porque além de limpo, bem tratado, saudável, belo e elegante, era poderoso, rico, sábio e invejado. Tinha o mundo a seus pés; jamais os seus pés estariam ali, chutados pelo mundo. Ria com todos os dentes e com todas as razões. Comandava multidões com um olhar incisivo e impunha suas decisões com um único gesto. Era mais que um homem.
Naquele momento, o Outro degustava um jantar requintado, servido por belas mulheres e acompanhado por rapazes brilhantes que esperavam uma palavra sua. Tinha ao seu alcance todas as invenções mais impressionantes, as bebidas mais elaboradas e os mais diversos títulos literários, bons e ruins. Depois do banquete, poderia admirar os jardins gigantescos e bem cuidados de sua casa, enquanto observava os limites de suas conquistas e a chuva fina que decorava as pétalas das flores.
Enquanto isso, o homem caído na calçada agitava-se sob uma chuva fria vinda inesperadamente, molhando os vestígios de roupa marcados pelas próprias fezes.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Invisível

Ele estava forte, imponente e cheio de coragem. Decidido a mostrar sua soberania e derrubar o que estivesse à sua frente. Arrebatador, sentia o mundo fragilizado por sua influência, por sua existência.
A destruição tornara-se deliciosa e causá-la era um prazer absurdo, embora questionável. Construir poderia ser até grandioso, mas levar as coisas ao fim, sem chance de reação ou reconstrução, era a melhor sensação que ele havia experimentado.
Atravessou ruas, praças, estradas e campos com uma virilidade que não cabia a mais ninguém. Ao atingir fronteiras distantes e inimagináveis, cansou-se. Ficou suave, tranquilo de sua força depois de gozar do poder que ela lhe concedeu. Acreditou que essa era parte da sabedoria dos grandes reis, dos verdadeiros déspotas. Via-se, então, como ser onipresente e intocável, inatingível aos outros seres comuns.
Seu orgulho cego, porém, foi mutilado no instante em que a viu. O oposto de sua imponência, ela era doce, frágil e todos os outros clichês pertinentes a quem – supostamente – tem a capacidade de permitir que um poderoso ouse ou se deixe amar.
E ele amou com vontade e com louvor, impondo toda sua intensidade numa relação que só ele cultivava. Ia todos os dias ao encontro dela, naquela árvore num canto da tímida fazenda. Nunca soube o que ela fazia naquelas manhãs, até porque parecia sempre fazer nada. Mas mentia para si mesmo, alegando que ao sentar ali cotidianamente, ela apenas fingia não vê-lo, num jogo de aproximação a partir da distância.
Com o tempo, decorou cada pedaço da sua pele e todas as fragrâncias que ela produzia naquele corpo delicado. Deslizava suave e discreto por seu cabelo ou por sua nuca arrepiada e a envolvia por completo, fazendo com que ela fosse sua, mesmo sem saber.
E apesar de a cada dia conhecê-la e senti-la mais, entendeu que jamais ela o enxergaria. Existia uma total indiferença, mesmo que aquela mulher percebesse sua existência. Mas não era o suficiente; e jamais seria.
Nesse dia, o desiludido decidiu ir embora. Nada mais restara daquele que um dia fora cruel, forte e poderoso. E nunca mais ele, o Vento, soprou as folhas daquela árvore sob a qual a moça descansava nas manhãs.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Corra, Lola, Corra

Fatos estranhos aconteceram na virada do ano: eu comi pouco diante daquela orgia gastronômica (e nos dias subsequentes, o que torna o fato de vc não ter emagrecido nem 100g ainda mais deprimente) e não me impus 467 resoluções de ano novo.
Mas isso não quer dizer que eu não tenha mil planos pra ele. Na verdade, o que anda me acontecendo é uma necessidade absurda de fazer todas as coisas que eu planejo pra uma vida inteira com uma urgência descabida. Parece que fui diagnosticada com uma doença incurável ou escapei da morte e agora tenho intenção de abocanhar as pessoas e o mundo descontroladamente, só que sem essa margem de anuidade.
Tenho planos e anseios pra vida, não pra 2011.
Então começo a pensar nos lugares que quero conhecer, nos livros que preciso ler e ter, nos filmes que quero assistir e colecionar, nos cursos de francês, alemão, fotografia, história da arte, tipografia e mais um milhão de outros que eu morro de vontade de fazer, nas coisas que gostaria de comprar, nas mudanças capilares que me cairiam bem, nos milhares de restaurantes da cidade - e de outras - nos quais eu quero comer, na carta de motorista que eu quero tirar, em tudo de novo que eu gostaria de conhecer e aprender.
E aí me bate um desespero. Desespero porque parece que eu tenho coisas demais a descobrir, fazer e adquirir e tempo de menos. Desespero porque uma vida só não dá conta de tudo isso. Desespero.

Eu era feliz quando, na passagem de ano, minha lista de resoluções tinham 467 itens, mas eles englobavam coisas mais palpáveis como "emagrecer 5kg" ou "tirar 10 em todas as matérias da escola, incluindo Ed. Física".


(Odeio escrever posts desse tipo, mas levando em conta o abandono desse blog, já tá no lucro)