segunda-feira, 19 de abril de 2010

Sinta

Gritos, exclamações e insultos são escutados ao longe. Adentrando na intimidade daquele quarto gelado, vê-se dois corpos ativos e tensos. Mergulhados em suas convicções, em seus próprios pontos de vista, sem que exista a possibilidade de calarem-se para ouvirem. Salivas disparadas no ambiente, um suor nervoso dissipando-se pelo ar, cordas vocais agredidas, dedos erguidos em denúncia, gestos grotescos de revolta ou incompreensão. Respiração ofegante, garganta seca, lágrimas contidas ou derramadas sem vergonha. Ranger de dentes, músculos contraídos, sobressaltos e retrocessos. Paira ali uma agressividade mútua, algumas palavras desmedidas e inexistente razão.
Então o cansaço os abate. Ofegantes e fatigados, repousam sobre a cama. Distantes, até caírem num sono perturbado.

Em algum outro lugar, só ouvidos atentos podem captar os sussurros. Mãos deslizam sobre ambos os corpos, a pele arrepia-se no mais suave dos toques. Palavras solitárias preenchem o profundo silêncio e ressoam como poemas, cânticos. Bocas umedecidas encontram-se, separam-se e experimentam sensações, revelando fraquezas tão ternas e delicadas quanto intensas. Falta-lhes o ar, o controle sobre si mesmos: eis a entrega. Cadenciados e harmoniosos, sentem-se leves, quase inexistentes. Ao mesmo tempo, muito vivos. Coração pulsando desregulado, sorrisos íntimos e olhares que invadem-se. Sentidos explorados até o último instante.
Então o cansaço os abate. Ofegantes e fatigados, repousam sobre a cama. Conectados, até caírem num sono acolhedor.

domingo, 18 de abril de 2010

Ora pois, patrícios!

Conversa verídica, escutada no ônibus, num domingo qualquer:

"- Ai, eu sempre achei essa coisa de chamar português de burro puro preconceito, até que comecei a trabalhar com eles.
- Jura? Por quê?
- Lá na Empresa X eles fazem muito negócio com gente de Portugal, então eu tinha muito contato com eles. Cada história, menina, de morrer de rir.
- Conta uma!
- Uma vez fui buscar um português no aeroporto, pra levar até a empresa. O sujeito pegou uma bagagem lá mas não conseguia abrir com a chave que ele tinha, foi reclamar e tudo com o pessoal do aeroporto!
- Hahaha Tinha pegado mala errada?
- Aham. Tinha duas malas iguaizinhas, ele pegou a que não era dele. Daí tava ele lá, reclamando, xingando o pessoal 'Como uma coisas dessas pode acontecer num aeroporto, ó pá?!', indignado. Até que chegou uma menina, com uma mala igual a que ele tinha pego. Quando ela viu ele lá, já entendeu tudo e quis trocar.
- E aí?
- Aí que o portuga surtou. hahaha Começou a gritar: 'Ora pois, esta rapariga roubou minha bagagem!'
- hahahaha Que doido!
- Pior é que a coitada da menina foi explicar pra ele que as bagagens só tavam trocadas. Pegou a chave dela, foi lá abrir o cadeado da mala que estava com ele e falou: 'Tá vendo, moço? Minha chave abre essa mala, tá trocada. Ó as minhas coisas aqui!'.
- Aí ele se conformou?
- Que nada! Ele apontou o dedo pra cara dela e disse 'Pois tire suas roupas da minha mala, rapariga!'"

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Só?

A menina está sozinha, observando as folhas caídas pelo chão e a teia de aranha construída sobre o banco. A intensidade com que respira denuncia o que sente por dentro: confusão. Ela está perdida, fragilizada e vulnerável.
O mundo transformou-se numa estrada um tanto quanto obscura e ela procura nos rostos estranhos algum olhar terno, a fim de encontrar proteção. Quer um abraço sem fim, um afago que ultrapasse o limite do corpo e lhe cubra a alma de paz.
Talvez esteja agressiva, o que significa apenas medo. Medo do que sente, do que imagina, do que lembra... Do que é agora: uma menina sozinha.
Então ela se cala e deixa fluir a corrente de águas turbulentas. Às vezes percebe-se sem forças e reduzida a fragmentos desconexos. Em outros momentos, alia-se à esperança - amiga imprescindível neste momento.
E assim as horas passam. Tudo passa, e isso a acalenta.